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Quando Amália cantou e encantou em Quelimane, por Álvaro Cabeças

Julho 15th, 2021 Posted by Caleidoscópio 0 thoughts on “Quando Amália cantou e encantou em Quelimane, por Álvaro Cabeças”


Por Álvaro Cabeças


Corria o ano de 1951 quando, num ditoso sábado do mês de Abril desse mesmo ano, a pacata capital da Zambézia se tornaria palco do mais brilhante e impressivo evento cultural do ano: um único recital com que Amália Rodrigues, já detentora de um reconhecido prestígio internacional, então no viço dos seus trinta e um anos, brindaria as gentes de Quelimane numa memorável noite de Fados, naquela voz única que todos lhe conhecemos.

Foto 1 – Amália à chegada ao aeroporto de Quelimane, com dois elementos da comissão de honra a seu lado, J. Pessoa e Costa e o Dr. Leitão Marques

Acode-me à mente o testemunho de um tio meu, admirador profundo do superlativo talento de Amália, que propositadamente se deslocara ao velho campo de aviação para a ver chegar. Segundo me contava, tantas eram as pessoas que ali tinham acorrido com o mesmo propósito que o velho aeródromo mais parecia um mar de gente.

Não existia, à época, na cidade, uma sala de espetáculos digna da nossa maior cantora de sempre. O excecional acontecimento teria lugar no vetusto Pavilhão do Clube Desportivo, situado ainda no mesmo local onde passados quinze anos nasceria a melhor unidade hoteleira da cidade, o moderno e prestigiado Hotel Chuabo, um dos melhores da África austral.

Quelimane não possuía, na década de cinquenta, um hotel que pudesse condignamente receber Amália Rodrigues. Constituir-se-ia então, para o efeito, uma Comissão de Honra presidida pelos senhores Eng.º Ferreira Martins, Dr. Leitão Marques, Francisco Pereira, António Regado e José Pessoa e Costa, o anfitrião de Amália a quem coube fazer as honras da terra e que a acolhera à saída do avião, um bimotor Lockheed 10 “ Electra” que a trouxera da cidade de Inhambane, onde já havia cantado. À falta de um alojamento adequado para receber Amália e os seus guitarristas, logo se disponibilizou uma bonita moradia que os habitantes da cidade gentilmente se dispuseram a mobilar e a apetrechar para que nada faltasse, onde Amália ficaria confortavelmente instalada.

Foto 2 – Amália à saída do avião que a trouxe a Quelimane com o anfitrião J. Pessoa e Costa e a seu lado Raul Nery um dos músicos que a acompanhou. Na foto também, de calções, João Rocha funcionário da transportadora aérea DETA

Volvidas quatro décadas, já eu me encontrava em Portugal, Amália recordaria essa sua marcante passagem por Quelimane: “uma terra pequena, com muitos coqueiros, mas de gente simpática e hospitaleira que me recebeu numa bonita casa enfeitada com muitas flores, onde nada faltava.”

Foi uma noite inaudita, única, como pode imaginar-se, em que Amália, na plenitude da sua fabulosa voz, deleitou a audiência que lotara por completo a velha sala do Desportivo. Recordo-me de ouvir a alguns familiares meus e a pessoas que ainda conheci que fora entusiasta e apoteoticamente aplaudida, e todos quantos tiveram o privilégio de escutá-la, naquela noite, guardaram por muito tempo a viva emoção que Amália lhes tinha causado.

Não mais voltaria a cantar na cidade dos palmares. Porém, dezoito anos depois, em 1969, ainda havia de voltar a passar em trânsito por Quelimane, rumo à cidade de Nampula para ali dar um recital. Uma vez mais, o velho aeródromo tornar-se-ia acanhado para comportar uma verdadeira mole humana, onde eu próprio me incluía, apenas para vê-la e acenar-lhe de longe. Inesperadamente, como era usual naquelas paragens, um negro céu, sulcado por uma profusão de flamejantes relâmpagos corroborados por um intenso e sinistro ribombar de trovões, prenunciava já uma inclemente tempestade tropical que, de súbito, se abateu sobre a cidade, impedindo Amália de desembarcar do turbo-hélice Fokker 27 – “Frienship” onde seguia. Com a generosidade que a caracterizava, fez questão de assomar à porta do aparelho, tal era a chuva espessa que copiosamente caía. Ouviu-se então, em uníssono, o seu nome repetido por toda aquela gente que com lenços lhe acenava e gritava o nome dela com quanta força tinha. Impossibilitada de desembarcar, num gesto largo, visivelmente emocionada, Amália acenou durante infindáveis minutos a todos os que ali fizeram questão de se deslocar, apenas para vê-la e demonstrar-lhe o seu enorme carinho.

Foto 3 – Amália viajando pelas ruas de Quelimane num dos melhores carros da cidade naquela época

Moçambique despedir-se-ia de Amália em dois inesquecíveis recitais que deu na cidade de Lourenço Marques em Junho de 1972. Primeiramente, no Cine-Teatro Nacional e, no dia seguinte, no Pavilhão do Sporting, onde galvanizou por completo quem ali estava, para vê-la e maravilhar-se com o timbre raro da sua voz.

Donas da Cidade – Navegando arquivo de factos e fantasia na memória das Donas de Quelimane

Abril 8th, 2021 Posted by Caleidoscópio 0 thoughts on “Donas da Cidade – Navegando arquivo de factos e fantasia na memória das Donas de Quelimane”

Artigo científico disponível para download aqui

Resumo

Na Zambézia, em Moçambique abundam histórias centradas em mulheres, mas cuja proeminência não está refletida nos livros de história oficial. As Donas, latifundiárias que floresceram entre os séculos XVII e XIX são das poucas mulheres cujo poder está reconhecido nos textos de história. O presente artigo discute formas em que mulheres vivendo atualmente na Zambézia recordam as Donas, e como as suas me- mórias contrastam com material de arquivo existente. A coleção de memórias interage criticamente com o conhecimento erudito existente sobre as Donas, e trás lógicas de recordação que desafiam, contradizem, mas também adicionam a factos históricos estabelecidos e aceites.

Mulheres na história sobre a Zambézia

Entre 2014 e 2015 levei a cabo uma pesquisa sobre a memória de mulheres de poder e autoridade na Zambézia, em Moçambique, com mulheres como as minhas informantes privilegiadas. Esta região de Moçambique está plena de histórias pessoais centradas em mulheres, mas cuja proeminência não está refletida nos livros de história oficial. Uma aparente excepção são as Do- 55 nas, latifundiárias que floresceram entre os séculos XVII e XIX e cujo poder está reconhecido nos textos de história.

As Donas surgem por meio de uma série de editais da Coroa portu- guesa, que tencionava estender a sua influência sobre a região. A terra por elas detida eram os chamados prazos da coroa, aforrados um prazo determinado, geralmente três vidas. Para vários estudiosos da história de Moçambique em geral e do Vale do Zambeze2 em particular, os prazos foram a primeira manifes- tação tangível da colonização portuguesa em Moçambique (e.g. DEPARTAMEN- TO DE HISTORIA, 2000: 58–59; RODRIGUES, 2006: 19) e seguiam um modelo já aplicado na Índia Portuguesa. Através dos prazos, a Coroa tencionava ocupar o território, concessionando território sob sua jurisdição3 aos seus vassalos, em troca destes assegurarem os interesses comerciais da Coroa e protegerem os fortes aí estabelecidos de invasões dos chefes locais (DEPARTAMENTO DE HISTORIA, 2000; NEWITT, 2014; PELISSIER, 1994; RODRIGUES, 2006a; SUBRAHMANYAM, 2007).

Os historiadores discordam de quando terá sido emitida a primeira ordem que favorecia especificamente as mulheres como foreiras. José Capela, por exemplo refere os anos de 1678 e 1686, tendo os prazos sido estabelecidos por Ordem Real de 14 de Fevereiro de 1626 (CAPELA, 1995: 21). Outros auto- res mencionam apenas que o sistema foi estabelecido no início do século XVII (ENNES, 1894; NEWITT; GARLAKE, 1967; PAPAGNO, 1980). Newitt e Garlake também mencionam que a legislação relacionada com o sistema dos prazos sofreu modificações em 1675, 1759, 1760, 1779 e 1832 (NEWITT; GARLAKE, 1967: 134), sem no entanto especificar a natureza dessas mudanças. Eugénia Rodrigues indica a data de 14 de Março 1675 como a primeira correspondência entre o Príncipe de Portugal com o Vice-Rei do Estado da Índia, estabelecendo a atribuição de terras com preferência para as mulheres e da herança pela linha feminina. Segundo ela, os diferentes autores baseiam-se nesta correspondência que de facto contemplava as Províncias do Norte do Estado Português de Goa e não Moçambique. Apenas mais tarde a ordem se estendeu aos Rios de Sena, como era chamado então o Vale do Zambeze. Tanto na Índia como em Portugal, tal ordem parece ter encontrado resistência à sua implementação (RODRIGUES, 2000, 2002, 2006b). Apesar disso, nos finais do século XVIII as mulheres eram as principais detentoras da maioria dos prazos do Vale do Zambeze (RODRIGUES, 2002), embora houvesse variações ao longo do vale.

Durante o trabalho de campo, recolhi histórias de família com a intenção de, entre outros aspectos, olhar para a formas subtis em que estas histórias confirmavam ou se distanciavam da informação existente sobre estas mulheres nos arquivos históricos. As histórias que aqui se apresentam referem-se à rede de Donas de Quelimane dos finais do século XIX e XX, quando o seu poder estava já em declínio, mas o efeito do seu passado glorioso permanecia intacto. A memória e fascínio por elas permanecem até hoje. Esta memória desafia os textos históricos existentes sobre as Donas, ao trazerem ao de cima detalhes que estão ausentes na sua narrativa. Os detalhes expostos têm a faculdade de realçar os preconceitos que permearam a selecção dos factos merecedores de constatem nos arquivos e os considerados irrelevantes ou quiçá fantásticos demais para constituírem realidade objectiva.

A materialidade do arquivo

A selecção do arquivo para condução do trabalho de base que antecipou a minha pesquisa etnográfica ocorreu com algum desconforto físico e emocional pessoal. Em Moçambique existe apenas um Arquivo Histórico Nacional, ligado à principal universidade pública. Em Portugal, no entanto, existem vários arquivos por onde escolher e ligados às mais variadas instituições. Estes incluem a Sociedade Nacional de Geografia, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, os Arquivos Históricos Ultramarinos (presentemente desmantelados), e a Biblioteca Nacional, entre outros. Adicionalmente existem arquivos que congregam informação, também sobre Moçambique, por toda Europa, nos Estados Unidos e na Índia, de onde operou longamente o governo sobre Moçambique, através do Estado da Índia.

Uma maior variedade de arquivos na antiga metrópole colonial simboliza para mim uma certa continuidade de “propriedade” sobre o passado histórico de Moçambique. Uma propriedade legítima, uma vez que é um passado partilhado. No entanto, com um espólio muito maior, até para albergar, os outros espaços da colonização.

Nenhum arquivo é neutro, e independentemente de qual fosse o escolhido para servir de base para o encontro com o facto histórico, traria consigo o legado da relação de poder sobre a contribuição para a (re)produção de conhecimento ou intencionalidade inevitável, mesmo que mascarada de presumível imparcialidade. A multiplicidade de espaços de arquivo na Europa e Estados Unidos, onde se pode recolher detalhes sobre a história de Moçambique, comprova uma maior produção e guarnição e conhecimento sobre Moçambique por entidades e autores desde fora do país, do que dentro. São exemplo de tais autores, Malyn Newitt (NEWITT, 1995), René Pelissier (PELISSIER, 1994), Allen Isaacman (ISAACMAN, 1972, 1975), apenas para mencionar alguns e excluindo autores portugueses.

Nos países africanos, apenas os arquivos nacionais produzem e acumulam tal produção de conhecimento, dentro de um plano de construção nacional e usando em grande medida o mesmo material de arquivo que o produzido e guarnecido nas antigas potências coloniais, ainda que interpretando-o e enriquecendo-o onde possível com conhecimento e percepções locais. No caso de autores moçambicanos, a história enriquecida desde o ponto de vista moçambicano enquadrou-se no contexto pós-colonial de construção nacional de veia marxista. Na tradição africanista pós-colonial, recorreu de testemunhos orais e evidências arqueológicas para recuperar memória de uma história pré-colonial e enfatizando o processo de opressão e resistência à ocupação estrangeira imperial. Neste processo descurou grupos como as donas, localizados num entre-lugar entre a estrutura colonial e nativa.

Por outro lado, cada arquivo tem uma lógica única, uma linguagem que requer tempo para entender e a ela se adaptar. Por exemplo, o Arquivo Histórico em Moçambique pareceu-me inexpugnável para uma iniciante como eu. O sistema estava apenas parcialmente digitalizado e não havia garantias que os documentos pudessem ser encontrados. Algumas das fontes primárias encontravam-se no campus universitário, num edifício separado do edifício central do arquivo e estavam registados em códigos que me pareciam excessivamente crípticos.

Não sendo o meu um projecto de história, acabei escolhendo a Biblioteca Nacional de Lisboa como principal fonte de material de arquivo de base para o projecto. Apesar do nome, a Biblioteca Nacional em Lisboa aglomera fontes primárias e secundárias de várias áreas e interesses, incluindo um vasto arquivo colonial. De todos arquivos por mim visitados, era o único que tinha a lista do seu espólio inteiramente digitalizada, com a possibilidade de rapidamente buscar documentos com base em palavras-chave. Num mundo de informação abundante, desde relatórios administrativos, a crónicas e até trabalhos de ficção, um arquivo de acesso simples permitia uma selecção da informação relevante mais rápida.

O edifício da Biblioteca Nacional é uma construção típica do Estado Novo – na tradição grandiosa e megalómana da arquitectura comum em um regime fascista. O regime do Estado Novo foi responsável a presença colonial nos espaços africanos lusófonos para além das outras potências coloniais. Apesar disso, foi de todos os arquivos em Portugal o que menos me fez sentir desconfortável, como seria de esperar de um confronto com os detalhes da subjugação do “outro”, sendo eu parte desse “outro”.

Depois de me decidir pelo espaço físico de encontro com o arquivo, seguiu-se a definição de como engajar com o material de arquivo. A literatura sobre a etnografia dos arquivos focaliza em geral no poder judicial e administrativo que o material de arquivo emana (MACFARLANE, 1988; TRUNDLE; KAPLONSKI, 2011), alternativamente, e seguindo a abordagem de Ann Stoler (STOLER, 2009) concentra-se nos indivíduos que contribuíram para a criação e manutenção do arquivo, em toda a sua complexidade e cuidadosamente embebidos nos seus contextos históricos particulares (GOUDA; RABEN; NOR- DHOLT, 2009; PROTSCHKY, 2011).

O meu projecto não se enquadra em nenhuma destas abordagens. Por um lado não pretende estender-se na discussão sobre a autoridade que os arquivos mantidos pela antiga potência colonial representam em relação à propriedade contínua do passado histórico moçambicano. Pese embora reconheça, muito na tradição Foucaultiana de Ann Stoler a contribuição activa do arquivo na hegemonia da produção de conhecimento enviesada. Por outro lado, se estendesse em demasia o objecto de estudo para uma etnografia do arquivo correria o risco de prolongar o projecto, elevando a discussão a um nível metafísico que tornaria as histórias de vida – o material etnográfico de rebate ao arquivo – marginais, senão mesmo irrelevantes.

Desta forma, o meu encontro com o arquivo acabou por se tornar uma oportunidade para a produção do contexto e aprendizagem sobre os caminhos da construção persistente e subtil de formas de compreensão do passado histórico, dos factos convencionados e aceites como referência. Engajei-me, preferencialmente com as discussões do material secundário, e mais raramente com o material primário. Contrapondo o material de arquivo com o material etnográfico, percebi que qualquer material considerado factual pode de facto ser contestado. Na discussão de onde reside a autoridade e na recolecção do poder e valor do testemunho oral, as novas teorias antropológicas da produção de memória parecem oferecer caminhos interessantes. Como sejam as novas teorias de afecto e memória material (NAVARO-YASHIN, 2009), ou a reflecção sobre emoções, incorporação, diferenciação e relações de poder (KONTOPODIS; MATERA, 2010). Este ultimo privilegia as memórias de práticas do dia-a-dia, em oposição ao evento e examina questões relacionadas com identidade, imaginação e produção do outro.

Quelimane dos arquivos e fantasias

A história de Quelimane confunde-se com a da Zambézia. O distrito de Quelimane foi criado em 1817 e extinto em 1829 quando foi incorporado no distrito de Sena. Em 1853, voltou a ser instituído como distrito (DEPARTAMENTO DE HISTORIA, 2000: 249). Ao contrário do que acontece com o Vale do Zambeze, em relação à actual província da Zambézia, a área da actual província da Zambézia corresponde à área do antigo distrito de Quelimane. A capital da província conserva o nome do antigo distrito.

Quelimane era uma povoação swahili no delta do rio Zambeze, que servia como porto para acesso ao interior (RODRIGUES, 2008: 32). De acordo com Manuel Lobato (LOBATO, 1995: 164–165), os portugueses começaram a frequentar o Zambeze para escoarem ouro, marfim e escravos oriundos do interior em 1540, no entanto só em 1544 se terão estabelecido em Quelimane. Ao longo do Zambeze os principais centros populacionais eram Quelimane, Sena e Tete, que serviam de base para as rotas comerciais para as diversas feiras do interior (RODRIGUES, 2008: 35, 2010: 254). No entanto, só em finais do século XVIII o porto de Quelimane ganhou relevância comparativa devido ao comércio internacional, de entre outros da copra, o que conferiu aos prazos do delta do Zambeze e à cidade de Quelimane em particular uma importância maior do que quando o comércio era dominado pelo ouro e marfim. Nesta altura foram emitidas autorizações que permitiam os navios saírem diretamente do porto de Quelimane sem passarem pela Ilha de Moçambique, na altura a capital do território. Em 1812 foi, inclusivamente aí instalada uma alfândega (RODRIGUES, 2006a: 29).

Donas das memórias

A instituição dos prazos criou uma elite na intersecção das sociedades colonial e nativa. As donas, na literatura e nos arquivos estão localizadas num não lugar. Não inteiramente nativas para os nativos, e nativas demais para a sociedade colonial. A questão da mestiçagem figura de forma central na literatura sobre as donas e a sociedade criada pelos prazos, assim como no imaginário da sociedade que se lhes seguiu após a sua extinção. Pelo menos duas das minhas informantes afirmaram que estas mulheres “mistas” eram donas – no sentido de proprietárias e comandantes dos destinos – de Quelimane.

Esta percepção ecoa a afirmação de Capela segundo quem a dona da Zambézia terá sido uma “reivindicação da mulata na afirmação do status adquirido” (CAPELA, 1995, p. 69). Em outras descrições a dona é considerada sinónimo de “europeias, mulatas ou [de] origem em Goa” ou “mulheres de cabelo corrido” (CAPELA, 1995, p. 67). Efectivamente, as primeiras donas tinham origem goesa. Eram elas Dona Ignez Garcia Cardozo, proprietária do prazo do Luabo e Dona Sebastiana Fernandes de Moura, proprietária dos prazos Quizungo, Macuze, Sone e Inhasoreire (CAPELA, 1995: 79, 81). Com o decorrer dos anos o número de descendentes afro-euro-asiáticos e proprietários de prazos terá multiplicado. Tendo havido preferência pelo casamento dentro do grupo ou com novos europeus, até pela garantia do acesso à propriedade. Ainda assim, e o casamento com mulheres nativas continuou.

A obsessão em torno da miscigenação da elite dos prazos foi sempre maior em relação às mulheres do que para com os homens. Enquanto os homens com o mesmo tipo de miscigenação eram simplesmente considerados muzungos, as mulheres tinham uma hierarquia estabelecida. Elas eram intituladas de donas, sinharas e nhanhas (CAPELA, 1995: 69), sendo estas últimas descritas por vezes de forma depreciativa como “amázias dos mozungos” (CAPELA, 1995: 67).

Como referido acima, a miscigenação faz também parte de alguma descrição das donas feita pelas minhas informantes. Também faz parte a descrição da africanização dos europeus que se casavam com mulheres nativas, como é amplamente defendido por Isaacman (ISAACMAN, 1972). Uma das minhas informantes descreveu as anhanhe como mulheres [negras], casadas com brancos (azungo). A sinhara era filha da nhanhe, e que quando a mãe falecesse a filha passava a ser sinhara. As donas vinham de Portugal – eram, portanto brancas – ou tinham riqueza – filhas de brancos que herdavam a propriedade dos seus pais. Outras informantes definiram a nhanhe como uma mulher casada com alguém importante, fosse branco ou não. A sinhara seria uma mulher que por ela própria era rica, mesmo sem marido. Foi descrita, por estas como branca mas que não vivia na cidade. A dona seria “filha de alguém, casada e que vive em casa dela” (tem propriedade própria). O casamento a que se referiam era com militares estacionados em Moçambique (alferes e furriéis). Alguns destes militares eram já casados em Portugal, e portanto não se podiam casar com as mulheres nativas. A coabitação sem casamento seria menos provável com a dona. Outras informantes ainda não conseguiam estabelecer uma distinção clara entre as donas, sinharas e anhanhe, detendo qualquer delas terras e poder sobre as gentes que nelas habitavam.

Nhanhe, irmã do régulo Voabil, usando blusa e capulana, sem data (colecção privada da família Voabil)
Figura 1 – Nhanhe, irmã do régulo Voabil, usando blusa e capulana, sem data (colecção privada da família Voabil)

Estas descrições coincidem parcialmente com a definição de capela do que era a dona, simultaneamente proprietária autónoma de terra e escravos (CAPELA, 1995: 79). A riqueza da dona, de acordo com as minhas informantes residia no terreno, nos coqueiros, no arroz e dinheiro. A mão-de-obra continuou efectivamente escrava, ainda no século XX. Mesmo quando a denominação mudou e a escravatura foi oficialmente abolida, as relações de patronato mudaram pouco. A capacidade de contratar e comandar mão-de-obra para trabalhar as terras manteve-se intimamente ligada à riqueza da dona.

Existem, no entanto outros aspectos de distinção mais consensuais que ultrapassam a questão da miscigenação. Estes incluem a descrição das vestimentas e diferentes formas de adorno. Unanimemente, todas minhas informantes descreveram que a real distinção na hierarquia das donas se via pela forma como se apresentavam. As anhanhe usavam combinações (roupa íntima), coberta por uma ou várias capulanas (pano). As sinharas usavam bajus, vestuário feminino originário da Índia. As donas usavam ombreiros e mangas compridas.

Adicionalmente, as donas reconheciam-se pelas joias de ouro que adornavam, a maluata (pequena bolsa) onde carregavam as suas libras de outro. Faziam-se também carregar de machila (liteira), por onde andassem. As outras senhoras, também se adornavam com jóias. Quanto menor o seu estatuto na sociedade feminina, menos precioso o metal com que se adornavam.

D. Ernestina de Menezes Soares, sem data
Figura 2 – D. Ernestina de Menezes Soares, sem data (colecção privada da família Barros)

Outro aspecto importante da sociedade onde se inseriam as donas eram as redes que elas estabeleciam tanto com os seus pares, como com a sociedade nativa. Seguindo a história de vida de uma das Donas de Quelimane, foi possível vislumbrar a rede de relações por elas estabelecidas entre si, o poder e prestígio que comandavam, apesar do declínio da instituição dos prazos e da sua própria capacidade económica.

Esta dona era D. Amália de Menezes Soares Pinto, filha de António Maria Pinto, um goês e D. Ernestina de Menezes Soares (vide Figura 2). O seu pai foi supostamente o fundador do prazo do Carungo9, um prazo situado em Inhassunge. A sua mãe era ela também filha de um goês, Amaro Francisco de Menezes Soares proprietário do prazo de Chirangano. D. Amália herdou a propriedade do Carungo de seu pai. Na altura, estava casada com Francisco Gavicho do Prado e Lacerda que passou a gerir o prazo. Nas suas várias obras sobre a vida e sociedade zambeziana, Gavicho auto-proclama-se um dos últimos prazeiros da Zambézia.

D. Amália raramente viveu no Carungo, tendo preferido sempre a cidade, onde viveu grande parte da sua vida enquanto solteira e depois de se separar de Gavicho de Lacerda, com D. Eugénia Peixe, uma das mais proeminentes Do- nas da Zambézia e que era prima do pai de D. Amália. Segundo uma das minhas informantes, neta de D. Amália, D. Eugénia Peixe foi a última das donas da Zambézia. O mesmo consta no Museu de História Natural em Maputo e alguma literatura, não necessariamente especializada na história do Vale do Zambeze (CRUZ, 2008).

De D. Eugénia Peixe contou-me a neta de D. Amália:

“[D. Peixe] tinha muito ouro, pulseiras, brincos. Criou uma criança, André Janeiro. Deu cabo da senhora com batota. Nem campa teve. Dona Eugénia Peixe era de peso. D. Eugénia quando morreu tinha raízes. Cuidado com ela. Tinham medo dela. Tinha má boca. Dizia, se alguém a apanhasse de viés, “deixa-lhe, vamos ver onde vai”. Falava só Sena. Donas antigas falavam só Sena. Talvez falassem português com os maridos. Rogava pragas em Sena. Tinha má boca.”

D. Ernestina, mãe de D. Amália era do Luabo e também ela falante de CiSena. A questão linguística remete para a relação entre as donas e as populações nativas, tanto trabalhadores como parentes das donas. CiSena não era a língua da região de Quelimane, onde impera o Echuabo. Nem as duas línguas são mutuamente inteligíveis. No entanto, as movimentações populacionais características da região do Vale do Zambeze permitiam a comunicação entre falantes de línguas diferentes. Adicionalmente, dentro dos membros da casa da dona estavam as canhanhe e os canfumo, parentes nativos da dona.

As “raízes”, de que fala a neta de D. Amália tem a ver com o apelo ao oculto, que muitas donas pareciam ter. De D. Eugénia dizem que tomava banho à meia-noite, nua no quintal, rodeada pelas suas aias. O seu poder estaria acrescido pelo poder dos curandeiros. Por essa razão os seus maridos estariam dominados por elas. Esta descrição reforça a descrição da relação das donas com os curandeiros e a gnose e cosmogonia nativa da região (RODRIGUES, 2010).

Mas o domínio das donas sobre os homens não era apenas restrito ao alegado feitiço ou magia. As mulheres participavam dos ritos de iniciação, onde se iniciavam nas práticas misteriosas de sensualidade. As sinharas e donas também eram iniciadas, pelas suas mães anhanhe. Por outro lado, a relação com o marido é descrita de forma material. “Ele comprava uma prenda para a mulher, mas não entregava até ela dançar danças eróticas”, diz-me a informante que relata sobre os ritos de iniciação. Conta-me também que os maridos quando fossem à Índia traziam prendas. Deles elas aprendiam a “comportar-se”, supõe-se que de acordo com as regras da sociedade colonial. O sentido de superioridade de umas em relação às outras incluía este domínio do comportamento “apropriado”.

O mau feitio das donas não foi mencionado apenas em relação à D. Eugénia. Outra informante fala de uma D. Ana, que herdara o terreno do pai ou do marido. “Metia medo, não queria confiança com as pessoas. [As pessoas] tinham respeito, não entravam na casa de qualquer maneira.” Várias fontes da época mencionam D. Anna de Moraes Pimenta, “filha de D. Pedro José de Morais, de Vila Real de Trás os Montes, (…) uma senhora macaense, viúva do coronel Fernando Augusto da S. Pimenta, ex-governador de Tete e Quelimane” (QUINTI- NHA, 1929). A neta de D. Amália também menciona sobre D. Ana Pimenta, que acabou morrendo na miséria, arruinada pelo procurador, de nome Moreira. Apesar do feitio, e dentro do hábito comum da época, D. Pimenta recolhia crianças em sua casa, de quem cuidava.

Fala-me outra informante de D. Adélia, mãe do Vasco Henrique de Oliveira. Era mulher do Administrador do Carungo. “Se alguém passasse e não cumprimentasse era massacrado. Tinha um instinto de malvadez. Acabou por
enlouquecer.”

Entre as donas “boas”, conta-me uma das minhas informantes, está D. Alzira. Esta dona, de nome completo Alzira Maria de Arroches Valadas Branquinho, diz-me a informante também teve ao seu cuidado muitas crianças. Ela era tia-avó de Maria Sorensen, autora do livro “D. Theodora e os seus Mozungos” (SORENSEN, 1998), que a considera de facto a última Dona da Zambézia, como atesta a dedicatória do seu livro.

Outra dona de que me fala a neta de D. Amália é D. Chipire, de seu nome Etelvina que fora casada com um dos directores da Companhia do Boror, goês de nome Ribeiro. Quando eles se separaram, conta-me a minha informante, ele levou os filhos. No livro “40 graus à sombra” (MONTEIRO FILHO, 1939), D. Chipire é mencionada com o nome de baptismo de Henriqueta. Dela é dito, no livro que matou o marido envenenado. Entre a memória esfumada e um estória ficcionada, é difícil discernir facto de realidade. No entanto, obras de ficção fazem parte de mnemónicas usadas por algumas das minhas informantes para recordar aspectos fundamentais da sociedade das donas. Para além de “40 graus à sombra” e “D. Theodora e os seus Muzungos”, falam-me da ficção de novelas brasileiras como Escrava Isaura e Av. do Brasil. Nesta última, uma mulher também recolhia crianças que posteriormente entregava a quem quisesse cuidar.

As diferentes informantes lembram diferentes donas. Todas mencionam D. Eugénia Peixe, várias mencionam D. Chipire. Pelo menos dois dos meus informantes mencionam a Menina Pácoa (Pascoinha). Menina porque nunca se casara. É memorável, mas não me explicam porquê. Na página do Facebook do Grémio dos Radialistas, num post em memória a Né Afonso, animador de programas de crianças, descubro que a Menina Páscoa tinha dedo para a cozinha.

(Não)-legado dos arquivos

Os arquivos coloniais são inegavelmente fonte importante de conhecimento, mas são também de desconforto, senão de conflito. Ainda que se parta do princípio que nenhum arquivo é neutro, e se leia os arquivos de forma crítica, não é possível ultrapassar o enviesamento da recolha e da decisão do que merece ser ou não arquivado e/ou estudado.

Os arquivos coloniais portugueses estão plenos de descrições sobre o processo de conquista e ocupação dos territórios ultramarinos, bem como da relação entre conquistadores e as populações nativas. As descrições incluem práticas e costumes, vistas e avaliadas pelos olhos dos cronistas. Estas descrições têm sido valiosas e determinantes para a reconstrução do processo colonial. Autores da história colonial portuguesa, mas também de outras potências coloniais e dos próprios espaços colonizados apoiam-se nestas fontes, que estão entre as mais antigas que existem sobre a descrição de vários povos.

A memória etnográfica descrita acima indica o que o material de arquivo não permite vislumbrar, como as relações humanas, que não as formais. Isto é, ao selecionar o que merece ser registado, deixa de fora um rol de relações informais, que no entanto fazem parte intrínseca da realidade que o arquivo pretende conservar.

Neste caso específico, os arquivos mencionam a quem pertenceram as propriedades, e fielmente permitem perceber quem comprou ou herdou as mesmas ao longo dos tempos. O que eles não permitem ver são os dramas humanos que antecederam ou sucederam o trespasse das propriedades, por exemplo. Donas arruinadas, separadas, abandonadas ou enviuvadas.

Nos arquivos estão também registados os hectares, número de coqueiros e escravos ou são abstractamente referidos “um grande número de trabalhadores”. No entanto eles pouco elucidam sobre as relações pessoais entre as donas e os seus trabalhadores. A percepção do escravo, do trabalhador forçado ou do contratado sobre o seu patronato não transparece no arquivo. Mesmo a historiografia sobre os movimentos de libertação, apenas descreve os maus tratos, mas não as impressões sobre a personalidade dos executores.

A literatura baseada nos arquivos descreve também a relação próxima entre as donas e os seus familiares nativos. Mas não qualifica, nem nomeia os parentes (canhanhe e canfumo), como nomeia as escravas (bandázias). Não estabelece, também de facto a relação íntima da nhanhe com a dona, sendo que aquela é sua mãe. Da nhanhe não se menciona nome, como se faz da dona. A nhanhe é relegada a “amázia de muzungo”, ignorando o prestígio que ela de facto tinha como proprietária de terras e escravos também ela.

Para as donas que não tinham parentes nativos, as originárias da Índia, Portugal e até Macau a relação com a população nativa não foi menos importante. Estas frequentemente recolheram como afilhadas crianças nativas, que pare- cem ter tido o mesmo papel que as canhanhe e os canfumo das donas mestiças.

O material de arquivo também não permite vislumbrar a importância de aspectos simbólicos como o vestuário, as joias e o modo de transporte, focalizando em outros aspectos que embora relevantes não são talvez os únicos ou os mais importantes na distinção feita pela sociedade, como é o caso da miscigenação.

A dona tem uma aura mitológica, de certo modo tanto no material de arquivo, como na literatura académica e também de ficção. Muita da ficção sobre as donas recorre a factos e personagens reais. A realidade mistura-se com a fantasia. No entanto, na inverdade da ficção ou na falta de fiabilidade da memória, as obras de ficção surgem como mnemónicas acessíveis para recordação do padrão geral. Estas obras e estes encontros com a memória lembram que os factos pouco valem sem os seus significados mais profundos.


Breve nota biográfica

Carmeliza Soares da Costa Rosário nasceu em 1975 em Maputo, filha de pais Zambezianos. 

Tem o grau de Mestrado em Antropologia Social e de Desenvolvimento e é candidata a Doutoramento pela Universidade de Bergen, na Noruega. 

Passou todas as suas férias escolares calcorreando com os seus primos e primas as ruas de Quelimane, deliciando-se com a cozinha da sua avó materna. Donde se instalou a sua identidade zambeziana e a sua paixão pelas suas gentes e culturas. Tem orgulho de descender de donas e anyanye, de onde tira inspiração para o seu trabalho e visão do mundo.

O excelente trabalho que aqui inserimos sobre as Donas da Quelimane nos finais do século XIX e XX, foi publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília em 1917 e enriquece o nosso conhecimento sobre um aspeto social muito curioso da Zambézia, investigado pela autora de forma acutilante.

Praia de Zalala, Quelimane. Fotografia de António Leitão Marques

Zalala, a praia do extenso olhar – por Eduardo C. White

Março 16th, 2021 Posted by Caleidoscópio 0 thoughts on “Zalala, a praia do extenso olhar – por Eduardo C. White”

Na costa oriental de África, numa zona costeira de cerca de 1,000 quilómetros, desde Regone até Supinho, estende-se para o infinito, a praia de Zalala, de onde chega o marulhar das grandes ondas, o barulho anfíbio dos búzios, a gelatinosa substância das alforrecas, as conchas místicas, desocupadas em suas cores e formas diversas e resíduos variados de terras distantes que não podemos descortinar das suas margens.

Zalala, a 40 km da cidade de Quelimane, que é um beijo gigantesco do Índico às suas areias límpidas e claras e que parece vêm de cobrir as extensões do Mundo, olha calma os grandes coqueirais, as casuarinas em seus elegantes bailados e as canoas e as redes dos pescadores de tronco nu, enrolando a nudez das mugondas  no azul que desce sobre as águas.

Confirmam, alguns historiadores, que foi a primeira Capital da Província da Zambézia, antes de Maquival e depois Quelimane, e ter sido, também um importante centro de comercialização de escravos. Com imensas qualidades paisagísticas pode-se considerar Zalala um magnífico destino turístico.

A sua maresia tem na pele um cheiro profundo a mariscos e ao peixe que abunda lavrando as pequenas aves apressadas calcorreando a espuma que deixa o mar, depois de se ir, em busca dos marítimos alimentos que este vai deixando ao visitar as terrestres paisagens que namora.

Para lá das areias, a caminho das palmeiras, um denso pinhal torna leves os ventos que chegam do Índico e vão assobiar às janelas das casas do antigo Automóvel Touring Clube de Moçambique.

São edifícios simpáticos, marcados pelos seus terraços largos e pelos quintais que os circundam carregados de togomas, uma espécie de uva africana que nasce de um arbusto que parece ser apenas oriundo dali, fazendo a delícia  das crianças.

Como fazem as garoupas, o peixe serra, os camarões, os lagostins, as amêijoas e os caranguejos que os pescadores, ao raiar e ao terminar do dia, vêm vender, junto aos carros e às portas das residências balneares, para as intermináveis patuscadas dos mais adultos.

Num vale por detrás desse comboio de casas do antigo ATCM, um fio de água deixa crescer o arroz que a população local semeia, entre o gorjear dos bandos de minúsculos pássaros chamados Djogorros e dos libretos lúdicos das toutinegras. Terra de nascer e pôr de sois divinais, Zalala é uma pérola turística da província da Zambézia ao lado de outras praias como a de Pebane Muceliwa, Cabuiri.

Nela revisito muitas vezes a minha infância. A fisga nos bolsos, o lanho fresco, as barrigadas dos frutos paradisíacos que nascem ali junto ao sal e as areias soltas, as apanhas das amêijoas ao fim da tarde, as lagoas de água doce apinhadas de patos selvagens, os papagaios de papel que íamos levar a voar junto a água.

Meu cenário para os sonhos que só a meninice pode dar, cavalguei nos meus pés os heróis que me deixei ser por entre as casuarinas, os montes de areias brancas, os arbustos baixos, os insectos estranhos que o pitoresco ainda hoje nos deixa observar. E como fundo musical, um Índico azulando as mais belas operetas e os mais chorados versos líricos que só sem ler os podia ler.

Zalala que aqui se visita entre os olhos da memória e o corpo imortal da terra, zambeziana nos cheiros, no acolher e no calor das suas águas tão intenso como o das suas gentes. Gentes que têm a praia como extensão do seu olhar.


Breve nota biográfica

Eduardo C. White nasceu em Quelimane em 1963 e faleceu em Maputo em 2014 com 50 anos.

Deixou uma marca indelével na literatura moçambicana, contribuindo para a sua renovação.

É autor de uma vasta obra literária, principalmente na área da poesia, destacando-se entre outros:

  • Amar sobre o Índico, 1984
  • O País de Mim, 1989
  • Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave, 1992
  • Janela para o Oriente, 1999
  • O Manual das Mãos, 2004
  • Até Amanhã, Coração, 2005

Ao longo da sua carreira foi consagrado com inúmeros prémios literários:

  • Prémio da Gazeta da revista Tempo – Amar sobre o Índico, em 1987
  • Figura literária do ano, menção atribuída pela imprensa moçambicana, em 2001
  • Prémio José Craveirinha e prémio TVZine para a literatura – O Manual das Mãos, em 2004

Quelimane e a sua história, por Abdul Carimo

Agosto 2nd, 2017 Posted by Caleidoscópio 0 thoughts on “Quelimane e a sua história, por Abdul Carimo”

A história de Quelimane é parte da História de muitas histórias que fazem a História deste multiétnico, cultural, religioso e colorido Moçambique.

O que se conhece sobre Quelimane é-nos transmitido por via da tradição oral e de algumas obras escritas, sendo datada de 1154 a primeira notícia, através de um cronista árabe de nome El Edrisi, no relato perante a corte italiana, referindo-se a “Dendema”, um burgo situado na área da cidade, supostamente antepassado do Quelimane presente: Diz a tradição que Vasco da Gama, ao chegar à terra de Quelimane, entre 22 e 25 de Janeiro de 1498, entrou no estuário do rio Qua-Qua, que baptizou como rio dos Bons Sinais; ao desembarcar, implantou, na praia de Palane, que na altura denominou de S. Rafael, um pesado padrão de pedra com as armas reais de Portugal e a cruz lá talhadas.

Passando por várias transformações políticas e administrativas, desde a sua fundação, Quelimane foi, ao longo dos séculos, povoado árabe, feitoria, vila, nome de distrito, circunscrição e cidade, e por ela passaram diferenciados povos, antes dos portugueses, com objectivos puramente comerciais, subordinando-se à Capitania do Sena em 1500. Nos primórdios dos anos 1600, passa a ser governada por um capitão de Feira e, em assuntos de justiça, sob a esfera da Relação de Goa. Foi nesta época que se introduziu a Política dos Prazos, tendo uma tal D. Maria da Guerra aforado várias terras.

Quelimane integrava, no século XV, a rede comercial muçulmana dominada por Quíloa, que se estendia por vários pontos da costa oriental africana. A sua fundação relacionou-se com o alargamento dos centros de exploração aurífera para o norte do planalto Karanga, acompanhando a expansão do Estado de Monomotapa.

A presença continuada dos portugueses está registada desde 1544. Nos primeiros anos de seiscentos, aumentaram o controlo da região, após a cedência das minas do Monomotapa, pelo Tratado de 1607, com a colonização do Vale do Zambeze.

A concorrência europeia, patente nos cercos holandeses à Ilha de Moçambique em 1607 e 1608, constituía uma ameaça à hegemonia portuguesa na região, suscitando ordens recorrentes da coroa para fortificar as trocas do Zambeze, cabendo ao general D. Estevão de Ataíde (1610-1613) a construção do forte de Santa Cruz, na Ponta Sul da Barra.

Subsequente ao Tratado de 1629, em que o mutapa Mavhura Mhande se reconheceu vassalo da coroa portuguesa, foi gizado um novo programa régio de colonização. A região do delta, antes sujeita ao capitão de Sena, foi dividida, em 1633, em duas capitanias, a do Luabo e a de S. Martinho de Quelimane.

Durante Seiscentos, Quelimane afirmou-se como o porto de entrada no Zambeze, em detrimento do Luabo. A entrada na sua difícil barra, com restingas de pedra e bancos de areia, exigia marinheiros experientes, os pilotos muçulmanos idos de Moçambique.

Cerca de 1634 notava-se uma dúzia de casas ao longo do rio, e no final da centúria elas eram 14 ou 15. Os edifícios cobertos de colmo e raramente de telha eram fabricados mormente em taipa e as habitações eram rodeadas de hortas e cercadas por fortes paliçadas. Em volta, distribuíram-se vastos palmares e pomares e as casas dos escravos. Na povoação, existia uma igreja, a de Nossa Senhora do Livramento, paroquiada pelos jesuítas, o hospício dos dominicanos e a casa dos padres da companhia de Jesus. No espaço urbano, destacava-se o Chuambo, um forte de madeira, sem guarnição militar, que abrigava os moradores das investidas dos chefes africanos. A pressão dos povos maraves, que, vindos do norte, acometeram nessa altura a região, contribuiu para que os macuas procurassem a protecção do forte português. Desenvolvendo uma identidade distinta, os macuas do litoral tornaram-se conhecidos por chuabos (gente do forte).

Depois de meados de Setecentos, no contexto das reformas subsequentes à autonomia de Moçambique em relação à India (1752), ocorreu uma notória dinamização do porto e da povoação. A coroa recuperou as ordens para fortificar a barra, após terem encalhado aí dois navios holandeses. A construção do forte de Nossa Senhora da Conceição, em Tangalane, na Ponte norte da barra, foi conduzida pelo engenheiro António José de Melo.

De uma povoação com cerca de 30 moradores, dos quais apenas 2 portugueses, em 1737, Quelimane passa à categoria de Vila na sequência de ordens régias de 29 de Maio de 1761, começando a gozar desse estatuto apenas em 6 de Julho de 1763. É instituída a câmara municipal, conservando o nome de S. Martinho de Quelimane.

As oportunidades do negócio esclavagista traduziram-se num assimilável aumento do número de moradores proeminentes: 20 em 1780; 30 em 1790 e 65 em 1822. Apesar do enriquecimento dos seus moradores e do interior das suas casas, a vila manteve-se como um conjunto de quintas dispersas por dois ou três arruamentos irregulares, frequentemente alagados. As novas edificações municipais, a casa da câmara e o pelourinho surgiram nos anos 1770. A igreja de Nossa Senhora do Livramento foi mandada reconstruir pelo governador e capitãomor general Baltazar Pereira do Lago em 1776, mas só foi concluída em 1786, por António de Melo e Castro.

No decurso dos anos oitocentos, a vila passa a capitania e capital do Distrito do mesmo nome, época em que já se exportava pelo seu porto, para além de escravos, ouro e marfim, dando-se início à criação das companhias majestáticas e outras de grande dimensão que se dedicam à exploração da copra, em regime de grandes plantações, substituindo os anteriores prazos.

A 24 de Novembro de 1853 é restabelecido o governo de Quelimane, vivendo nessa altura na urbe 355 cristãos, 120 muçulmanos e 17 escravos libertos.

Em 1857 dá-se início à construção do primeiro edifício destinado à Câmara Municipal, e em 1858 Quelimane é a capital da Zambézia, topónimo criado a 4 de Fevereiro do mesmo ano, vivendo na vila 9254 escravos e 59 libertos. Passa a sede de Governo em 1860.

Quelimane foi palco de grandes festejos, por ocasião da firmação do “Mapa Côr-de-Rosa” protagonizada por Capelo e Ivens, na tentativa de Portugal estabelecer a ligação entre Mocâmedes, no oceano Atlântico, e Quelimane, no Oceano Índico.

Em 1878, Quelimane assiste ao surgimento das primeiras revoltas camponesas, tendo tomado parte activa na sua repressão o prazeiro Mariano Henriques de Nazareth e sendo, na altura, presidente da Câmara Municipal de Quelimane o prazeiro José Bernardo de Albuquerque. Os sobreviventes foram acantonados em frente à Central Eléctrica de Quelimane.

Quelimane foi desde sempre um centro cultural e literário, tendo editado o “Clamor Africano”, um dos três jornais periódicos, de combate à exploração colonial, fundado entre 1886/1894 pelo jornalista angolano Alfredo Aguiar, chegado a Moçambique em 1879.

Há referências de circularem em Quelimane e Tete selos próprios entre 1893 e 1913 e, apenas em Quelimane, entre 1913 e 1920.

De 1904 a 1922 saíram do porto de Quelimane trabalhadores recrutados para S. Tomé e Príncipe e para o Transval, registando-se, até 1907, a saída de 8141 trabalhadores. Nesse período, Quelimane acolheu a visita do Príncipe herdeiro do trono de Portugal, D. Luís Filipe que, no ano seguinte, viria a ser assassinado juntamente com o seu pai, o Rei D. Carlos.

Em 1922 entra em funcionamento a linha férrea Quelimane-Mocuba e, no âmbito associativo, várias organizações socioeconómicas vêm os seus estatutos aprovados: o Clube de Quelimane e a Associação do Fomento do Distrito de Quelimane (1924); o Grémio Francisco Luís Gomes (1932); o Sporting Clube de Quelimane e o Grupo Desportivo Zambeziano (1936); a Associação Hindu e o Aeroclube da Zambézia (1937); o Sport Lisboa e Benfica (1954) tendo, nessa data, o Sporting Clube de Quelimane sido declarado Pessoa de Utilidade Pública e aprovado o Estatuto do Grémio dos Plantadores de Chá.

 


Fontes

Fotografia do Carnaval de Quelimane,

Os carnavais da minha memória, por Lo Chi

Abril 17th, 2017 Posted by Caleidoscópio 0 thoughts on “Os carnavais da minha memória, por Lo Chi”

Lo ChiSem dúvidas que o carnaval mais emblemático e marcante da cidade de Quelimane, no tempo antes e pouco depois da independência, foi o carnaval do Benfica.

Antes, porém, importa recordar que, antecedendo esses carnavais dos grandes salões ou dos ocorridos em campos gimnodesportivos, toda criança tinha o seu carnaval de bairro, quer fosse o bairro Kansa, o Vila Pita, o Sinacura, o Brandão, o Moreira, o Torrone, o Sangalivera, ou mesmo o Saguar ou o Mapiesua, em que os putos se juntavam em grupos de malta amiga, mascaravam-se, sem grandes requintes, e deambulavam pelo bairro, cantando e dançando, muitas vezes extasiando espectadores transeuntes, de tal jeito que estes acabavam dando-lhes uns trocos. Podemos situar essa actividade até ao princípio da escolaridade, na altura designada de ciclo preparatório, que seriam hoje a quinta e sexta classes claro com um matulão desocupado, normalmente descolarizado, como chefe de equipa e guardião do grupo. Lá para os quinze e desasseis anos, mais crescidinhos e com o thymos despontando em alta, não nos permitíamos esse despojamento. O assunto tomava outro rumo: era o carnaval dos adultos. Aliás, convém recordar que muitos dos adolecentes começavam a ter autorização, e a libertar-se do controlo apertado dos pais, para sair à noite e voltar de madrugada, a partir dos carnavais. E aí começava o lassar do controlo. Nesta senda, não é de admirar que muitos dos pequenos e pequenas viravam meio adultos, perdendo a virgindade nesse período de folia e muita libertinagem.

Dos carnavais, pode-se recordar que se centravam nos clubes, e deles os mais badalados foram os da Associação Africana, os do Sporting, com pouca expressão, porque estes esquecendo-se de que o carnaval é essencialmente uma festa popular, tentaram fazer um carnaval de elite que resultou num redundante fracasso. O carnaval que conseguiu êxito retumbante, quando completamente popular, foi o Carnaval do Benfica, sem dúvidas.

O clube, neste propósito o Benfica, organizava o Carnaval, solicitando não apenas a participação popular dos bairros da cidade, mas também das grandes empresas de renome na província, que davam o suporte financeiro e aproveitavam a deixa para publicitar os seus produtos, principalmente no chamado corso da inauguração e do enterro do carnaval, onde, nas viaturas, expunham os seus produtos e publicitavam as suas actividades. As pessoas, organizadas em grupo e suportadas pelas empresas, outras por iniciativas particulares, eram os chamados grupos foliões, dos quais recordo o da Padaria Nacional, o da Manica, o da 2M, o da Companhia da Zambézia, o do Bailinho, os Metralhas, os Chaves, os dos bairros já referidos, etc., etc.. A princípio, o Benfica, um pouco no sentido de permitir o envolvimento de todos, mas com pouca mistura, na hora do baile, durante a semana de carnaval, promovia dois bailes em simultâneo, um dentro do salão de festas do clube – no local onde hoje se encontra o chamado cinema Estudio 222 – e o baile onde a populção dos bairros se divertia à brava no pavilhão gimnodesportivo. Os conjuntos chamados a animar eram, por um lado, da elite, os The Blue Twisters, os Idavoli, a meio-termo, e por outro, salvo omissão, os Cometas, que actuavam no gimndesportivo, aliás este passou a ser o conjunto-mor e símbolo do som carnavalesco, com o exímio viola solo Bébé Temporário e o inesquecível baterista Cassamo, que numa daquelas então crónicas falhas de energia, pôs-nos, sozinho, sambamdo para cima de 45 minutos, aguentando com o tranco. A animação de fora era de tal intensidade que os de dentro não resistiam e vinham para fora. Até que, num desses finais, o Carlos Beirão, que também era vocalista de um dos conjuntos de dentro, chamou à realidade dos factos os organizadores, em pleno microfone, advinhando que o carnaval unificado teria outra dimensão. Escutado que foi o apelo pelos organizadores, unificaram-no; o carnaval, do ano seguinte em diante, passou a acontecer exclusivamente no pavilhão. Teve um salto de qualidade e intensidade emocional inefável; a sua fama saltou as fronteiras da cidade e viajou pelo país, ganhou outra vertigem. Nos anos subsequentes, as romarias de outras cidades para participação no carnaval da cidade de Quelimane foi explosiva; passou a figurar nos assuntos da temporada, com repórteres especiais dos orgãos de informação a deslocarem-se para a cidade, para descrever a folia dos zambezianos, a miscigenação de culturas, cores e raças, bem como dos diversos extractos sociais, num convívio particularmente interessante, fazendo dessa festa uma academia de convivência. Quem não se recorda das grandes reportagens do João de Sousa, da RM, fazendo jus à fama ganha pela festa de marca quelimanense, como também das reportagens, quer fotográficas, quer escritas, da revista Tempo, altamente conceituada na altura?! E isso sem falarmos da culinária única, que era posta nessa montra em que a cidade se transformava. Recordo-me, por exemplo, do grupo de foliões organizados vindos de Nampula, pertencentes à casa Guida, salvo erro. Bem como de sambistas exímios na arte de mexer o esqueleto, como o famoso Aligy, que, com uma simulação, pôs um guerilheiro recentemente chegado das matas, no carnaval imediatamente antes da independência, num histórico tombo com a sua Kalachnikov a tiracolo. No último dia de cada carnaval reinava a ansiedade de saber afinal quem seriam o rei e a rainha, e qual o grupo mais folião.

Aconteceu a independência, com todas as suas mutações e matizes, mas a essência carnavalesca da cidade ficou, ainda que em estado latente. Passados os complexos próprios de um país criança, a festa de carnaval foi retomada com as devidas e necessárias adaptações, numa nova miscelânea de sons e rítmos, passando pelos trajes. Desde o Pio Matos até ao presente mandato do Mano Mané, o município assumiu a gestão e organização do carnaval, e é feito na rua, ao jeito do sambódromo do Rio de Janeiro, numa festa eminentemente popular, onde a criatividade e habilidade dos bairros é posta à prova. Para mim, o senão está, decididamente, no som, que não consegue ter a potência requerida, bem como pelo facto de não cobrir todo o percurso da área de dança, com colunas estratégicamente localizadas. Outro senão, ao que me disseram já resolvido, isso porque este ano estive ausente, era o facto de a área dos comes e bebes estar distante da área da folia. O combustível dos foliões é a bebida e a comida. Parabéns pelo facto. Mas resolva-se o óbice som e ver-se-á a qualidade daí advinda. Explodir-se-á de novo, a outros níveis, para gáudio de todos.

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