Quando Amália cantou e encantou em Quelimane, por Álvaro Cabeças
Julho 15th, 2021 Posted by Mário Ventura Caleidoscópio 0 thoughts on “Quando Amália cantou e encantou em Quelimane, por Álvaro Cabeças”
Por Álvaro Cabeças
Corria o ano de 1951 quando, num ditoso sábado do mês de Abril desse mesmo ano, a pacata capital da Zambézia se tornaria palco do mais brilhante e impressivo evento cultural do ano: um único recital com que Amália Rodrigues, já detentora de um reconhecido prestígio internacional, então no viço dos seus trinta e um anos, brindaria as gentes de Quelimane numa memorável noite de Fados, naquela voz única que todos lhe conhecemos.
Acode-me à mente o testemunho de um tio meu, admirador profundo do superlativo talento de Amália, que propositadamente se deslocara ao velho campo de aviação para a ver chegar. Segundo me contava, tantas eram as pessoas que ali tinham acorrido com o mesmo propósito que o velho aeródromo mais parecia um mar de gente.
Não existia, à época, na cidade, uma sala de espetáculos digna da nossa maior cantora de sempre. O excecional acontecimento teria lugar no vetusto Pavilhão do Clube Desportivo, situado ainda no mesmo local onde passados quinze anos nasceria a melhor unidade hoteleira da cidade, o moderno e prestigiado Hotel Chuabo, um dos melhores da África austral.
Quelimane não possuía, na década de cinquenta, um hotel que pudesse condignamente receber Amália Rodrigues. Constituir-se-ia então, para o efeito, uma Comissão de Honra presidida pelos senhores Eng.º Ferreira Martins, Dr. Leitão Marques, Francisco Pereira, António Regado e José Pessoa e Costa, o anfitrião de Amália a quem coube fazer as honras da terra e que a acolhera à saída do avião, um bimotor Lockheed 10 “ Electra” que a trouxera da cidade de Inhambane, onde já havia cantado. À falta de um alojamento adequado para receber Amália e os seus guitarristas, logo se disponibilizou uma bonita moradia que os habitantes da cidade gentilmente se dispuseram a mobilar e a apetrechar para que nada faltasse, onde Amália ficaria confortavelmente instalada.
Volvidas quatro décadas, já eu me encontrava em Portugal, Amália recordaria essa sua marcante passagem por Quelimane: “uma terra pequena, com muitos coqueiros, mas de gente simpática e hospitaleira que me recebeu numa bonita casa enfeitada com muitas flores, onde nada faltava.”
Foi uma noite inaudita, única, como pode imaginar-se, em que Amália, na plenitude da sua fabulosa voz, deleitou a audiência que lotara por completo a velha sala do Desportivo. Recordo-me de ouvir a alguns familiares meus e a pessoas que ainda conheci que fora entusiasta e apoteoticamente aplaudida, e todos quantos tiveram o privilégio de escutá-la, naquela noite, guardaram por muito tempo a viva emoção que Amália lhes tinha causado.
Não mais voltaria a cantar na cidade dos palmares. Porém, dezoito anos depois, em 1969, ainda havia de voltar a passar em trânsito por Quelimane, rumo à cidade de Nampula para ali dar um recital. Uma vez mais, o velho aeródromo tornar-se-ia acanhado para comportar uma verdadeira mole humana, onde eu próprio me incluía, apenas para vê-la e acenar-lhe de longe. Inesperadamente, como era usual naquelas paragens, um negro céu, sulcado por uma profusão de flamejantes relâmpagos corroborados por um intenso e sinistro ribombar de trovões, prenunciava já uma inclemente tempestade tropical que, de súbito, se abateu sobre a cidade, impedindo Amália de desembarcar do turbo-hélice Fokker 27 – “Frienship” onde seguia. Com a generosidade que a caracterizava, fez questão de assomar à porta do aparelho, tal era a chuva espessa que copiosamente caía. Ouviu-se então, em uníssono, o seu nome repetido por toda aquela gente que com lenços lhe acenava e gritava o nome dela com quanta força tinha. Impossibilitada de desembarcar, num gesto largo, visivelmente emocionada, Amália acenou durante infindáveis minutos a todos os que ali fizeram questão de se deslocar, apenas para vê-la e demonstrar-lhe o seu enorme carinho.
Moçambique despedir-se-ia de Amália em dois inesquecíveis recitais que deu na cidade de Lourenço Marques em Junho de 1972. Primeiramente, no Cine-Teatro Nacional e, no dia seguinte, no Pavilhão do Sporting, onde galvanizou por completo quem ali estava, para vê-la e maravilhar-se com o timbre raro da sua voz.