Donas da Cidade – Navegando arquivo de factos e fantasia na memória das Donas de Quelimane

Abril 8th, 2021 Posted by Caleidoscópio 0 thoughts on “Donas da Cidade – Navegando arquivo de factos e fantasia na memória das Donas de Quelimane”

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Resumo

Na Zambézia, em Moçambique abundam histórias centradas em mulheres, mas cuja proeminência não está refletida nos livros de história oficial. As Donas, latifundiárias que floresceram entre os séculos XVII e XIX são das poucas mulheres cujo poder está reconhecido nos textos de história. O presente artigo discute formas em que mulheres vivendo atualmente na Zambézia recordam as Donas, e como as suas me- mórias contrastam com material de arquivo existente. A coleção de memórias interage criticamente com o conhecimento erudito existente sobre as Donas, e trás lógicas de recordação que desafiam, contradizem, mas também adicionam a factos históricos estabelecidos e aceites.

Mulheres na história sobre a Zambézia

Entre 2014 e 2015 levei a cabo uma pesquisa sobre a memória de mulheres de poder e autoridade na Zambézia, em Moçambique, com mulheres como as minhas informantes privilegiadas. Esta região de Moçambique está plena de histórias pessoais centradas em mulheres, mas cuja proeminência não está refletida nos livros de história oficial. Uma aparente excepção são as Do- 55 nas, latifundiárias que floresceram entre os séculos XVII e XIX e cujo poder está reconhecido nos textos de história.

As Donas surgem por meio de uma série de editais da Coroa portu- guesa, que tencionava estender a sua influência sobre a região. A terra por elas detida eram os chamados prazos da coroa, aforrados um prazo determinado, geralmente três vidas. Para vários estudiosos da história de Moçambique em geral e do Vale do Zambeze2 em particular, os prazos foram a primeira manifes- tação tangível da colonização portuguesa em Moçambique (e.g. DEPARTAMEN- TO DE HISTORIA, 2000: 58–59; RODRIGUES, 2006: 19) e seguiam um modelo já aplicado na Índia Portuguesa. Através dos prazos, a Coroa tencionava ocupar o território, concessionando território sob sua jurisdição3 aos seus vassalos, em troca destes assegurarem os interesses comerciais da Coroa e protegerem os fortes aí estabelecidos de invasões dos chefes locais (DEPARTAMENTO DE HISTORIA, 2000; NEWITT, 2014; PELISSIER, 1994; RODRIGUES, 2006a; SUBRAHMANYAM, 2007).

Os historiadores discordam de quando terá sido emitida a primeira ordem que favorecia especificamente as mulheres como foreiras. José Capela, por exemplo refere os anos de 1678 e 1686, tendo os prazos sido estabelecidos por Ordem Real de 14 de Fevereiro de 1626 (CAPELA, 1995: 21). Outros auto- res mencionam apenas que o sistema foi estabelecido no início do século XVII (ENNES, 1894; NEWITT; GARLAKE, 1967; PAPAGNO, 1980). Newitt e Garlake também mencionam que a legislação relacionada com o sistema dos prazos sofreu modificações em 1675, 1759, 1760, 1779 e 1832 (NEWITT; GARLAKE, 1967: 134), sem no entanto especificar a natureza dessas mudanças. Eugénia Rodrigues indica a data de 14 de Março 1675 como a primeira correspondência entre o Príncipe de Portugal com o Vice-Rei do Estado da Índia, estabelecendo a atribuição de terras com preferência para as mulheres e da herança pela linha feminina. Segundo ela, os diferentes autores baseiam-se nesta correspondência que de facto contemplava as Províncias do Norte do Estado Português de Goa e não Moçambique. Apenas mais tarde a ordem se estendeu aos Rios de Sena, como era chamado então o Vale do Zambeze. Tanto na Índia como em Portugal, tal ordem parece ter encontrado resistência à sua implementação (RODRIGUES, 2000, 2002, 2006b). Apesar disso, nos finais do século XVIII as mulheres eram as principais detentoras da maioria dos prazos do Vale do Zambeze (RODRIGUES, 2002), embora houvesse variações ao longo do vale.

Durante o trabalho de campo, recolhi histórias de família com a intenção de, entre outros aspectos, olhar para a formas subtis em que estas histórias confirmavam ou se distanciavam da informação existente sobre estas mulheres nos arquivos históricos. As histórias que aqui se apresentam referem-se à rede de Donas de Quelimane dos finais do século XIX e XX, quando o seu poder estava já em declínio, mas o efeito do seu passado glorioso permanecia intacto. A memória e fascínio por elas permanecem até hoje. Esta memória desafia os textos históricos existentes sobre as Donas, ao trazerem ao de cima detalhes que estão ausentes na sua narrativa. Os detalhes expostos têm a faculdade de realçar os preconceitos que permearam a selecção dos factos merecedores de constatem nos arquivos e os considerados irrelevantes ou quiçá fantásticos demais para constituírem realidade objectiva.

A materialidade do arquivo

A selecção do arquivo para condução do trabalho de base que antecipou a minha pesquisa etnográfica ocorreu com algum desconforto físico e emocional pessoal. Em Moçambique existe apenas um Arquivo Histórico Nacional, ligado à principal universidade pública. Em Portugal, no entanto, existem vários arquivos por onde escolher e ligados às mais variadas instituições. Estes incluem a Sociedade Nacional de Geografia, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, os Arquivos Históricos Ultramarinos (presentemente desmantelados), e a Biblioteca Nacional, entre outros. Adicionalmente existem arquivos que congregam informação, também sobre Moçambique, por toda Europa, nos Estados Unidos e na Índia, de onde operou longamente o governo sobre Moçambique, através do Estado da Índia.

Uma maior variedade de arquivos na antiga metrópole colonial simboliza para mim uma certa continuidade de “propriedade” sobre o passado histórico de Moçambique. Uma propriedade legítima, uma vez que é um passado partilhado. No entanto, com um espólio muito maior, até para albergar, os outros espaços da colonização.

Nenhum arquivo é neutro, e independentemente de qual fosse o escolhido para servir de base para o encontro com o facto histórico, traria consigo o legado da relação de poder sobre a contribuição para a (re)produção de conhecimento ou intencionalidade inevitável, mesmo que mascarada de presumível imparcialidade. A multiplicidade de espaços de arquivo na Europa e Estados Unidos, onde se pode recolher detalhes sobre a história de Moçambique, comprova uma maior produção e guarnição e conhecimento sobre Moçambique por entidades e autores desde fora do país, do que dentro. São exemplo de tais autores, Malyn Newitt (NEWITT, 1995), René Pelissier (PELISSIER, 1994), Allen Isaacman (ISAACMAN, 1972, 1975), apenas para mencionar alguns e excluindo autores portugueses.

Nos países africanos, apenas os arquivos nacionais produzem e acumulam tal produção de conhecimento, dentro de um plano de construção nacional e usando em grande medida o mesmo material de arquivo que o produzido e guarnecido nas antigas potências coloniais, ainda que interpretando-o e enriquecendo-o onde possível com conhecimento e percepções locais. No caso de autores moçambicanos, a história enriquecida desde o ponto de vista moçambicano enquadrou-se no contexto pós-colonial de construção nacional de veia marxista. Na tradição africanista pós-colonial, recorreu de testemunhos orais e evidências arqueológicas para recuperar memória de uma história pré-colonial e enfatizando o processo de opressão e resistência à ocupação estrangeira imperial. Neste processo descurou grupos como as donas, localizados num entre-lugar entre a estrutura colonial e nativa.

Por outro lado, cada arquivo tem uma lógica única, uma linguagem que requer tempo para entender e a ela se adaptar. Por exemplo, o Arquivo Histórico em Moçambique pareceu-me inexpugnável para uma iniciante como eu. O sistema estava apenas parcialmente digitalizado e não havia garantias que os documentos pudessem ser encontrados. Algumas das fontes primárias encontravam-se no campus universitário, num edifício separado do edifício central do arquivo e estavam registados em códigos que me pareciam excessivamente crípticos.

Não sendo o meu um projecto de história, acabei escolhendo a Biblioteca Nacional de Lisboa como principal fonte de material de arquivo de base para o projecto. Apesar do nome, a Biblioteca Nacional em Lisboa aglomera fontes primárias e secundárias de várias áreas e interesses, incluindo um vasto arquivo colonial. De todos arquivos por mim visitados, era o único que tinha a lista do seu espólio inteiramente digitalizada, com a possibilidade de rapidamente buscar documentos com base em palavras-chave. Num mundo de informação abundante, desde relatórios administrativos, a crónicas e até trabalhos de ficção, um arquivo de acesso simples permitia uma selecção da informação relevante mais rápida.

O edifício da Biblioteca Nacional é uma construção típica do Estado Novo – na tradição grandiosa e megalómana da arquitectura comum em um regime fascista. O regime do Estado Novo foi responsável a presença colonial nos espaços africanos lusófonos para além das outras potências coloniais. Apesar disso, foi de todos os arquivos em Portugal o que menos me fez sentir desconfortável, como seria de esperar de um confronto com os detalhes da subjugação do “outro”, sendo eu parte desse “outro”.

Depois de me decidir pelo espaço físico de encontro com o arquivo, seguiu-se a definição de como engajar com o material de arquivo. A literatura sobre a etnografia dos arquivos focaliza em geral no poder judicial e administrativo que o material de arquivo emana (MACFARLANE, 1988; TRUNDLE; KAPLONSKI, 2011), alternativamente, e seguindo a abordagem de Ann Stoler (STOLER, 2009) concentra-se nos indivíduos que contribuíram para a criação e manutenção do arquivo, em toda a sua complexidade e cuidadosamente embebidos nos seus contextos históricos particulares (GOUDA; RABEN; NOR- DHOLT, 2009; PROTSCHKY, 2011).

O meu projecto não se enquadra em nenhuma destas abordagens. Por um lado não pretende estender-se na discussão sobre a autoridade que os arquivos mantidos pela antiga potência colonial representam em relação à propriedade contínua do passado histórico moçambicano. Pese embora reconheça, muito na tradição Foucaultiana de Ann Stoler a contribuição activa do arquivo na hegemonia da produção de conhecimento enviesada. Por outro lado, se estendesse em demasia o objecto de estudo para uma etnografia do arquivo correria o risco de prolongar o projecto, elevando a discussão a um nível metafísico que tornaria as histórias de vida – o material etnográfico de rebate ao arquivo – marginais, senão mesmo irrelevantes.

Desta forma, o meu encontro com o arquivo acabou por se tornar uma oportunidade para a produção do contexto e aprendizagem sobre os caminhos da construção persistente e subtil de formas de compreensão do passado histórico, dos factos convencionados e aceites como referência. Engajei-me, preferencialmente com as discussões do material secundário, e mais raramente com o material primário. Contrapondo o material de arquivo com o material etnográfico, percebi que qualquer material considerado factual pode de facto ser contestado. Na discussão de onde reside a autoridade e na recolecção do poder e valor do testemunho oral, as novas teorias antropológicas da produção de memória parecem oferecer caminhos interessantes. Como sejam as novas teorias de afecto e memória material (NAVARO-YASHIN, 2009), ou a reflecção sobre emoções, incorporação, diferenciação e relações de poder (KONTOPODIS; MATERA, 2010). Este ultimo privilegia as memórias de práticas do dia-a-dia, em oposição ao evento e examina questões relacionadas com identidade, imaginação e produção do outro.

Quelimane dos arquivos e fantasias

A história de Quelimane confunde-se com a da Zambézia. O distrito de Quelimane foi criado em 1817 e extinto em 1829 quando foi incorporado no distrito de Sena. Em 1853, voltou a ser instituído como distrito (DEPARTAMENTO DE HISTORIA, 2000: 249). Ao contrário do que acontece com o Vale do Zambeze, em relação à actual província da Zambézia, a área da actual província da Zambézia corresponde à área do antigo distrito de Quelimane. A capital da província conserva o nome do antigo distrito.

Quelimane era uma povoação swahili no delta do rio Zambeze, que servia como porto para acesso ao interior (RODRIGUES, 2008: 32). De acordo com Manuel Lobato (LOBATO, 1995: 164–165), os portugueses começaram a frequentar o Zambeze para escoarem ouro, marfim e escravos oriundos do interior em 1540, no entanto só em 1544 se terão estabelecido em Quelimane. Ao longo do Zambeze os principais centros populacionais eram Quelimane, Sena e Tete, que serviam de base para as rotas comerciais para as diversas feiras do interior (RODRIGUES, 2008: 35, 2010: 254). No entanto, só em finais do século XVIII o porto de Quelimane ganhou relevância comparativa devido ao comércio internacional, de entre outros da copra, o que conferiu aos prazos do delta do Zambeze e à cidade de Quelimane em particular uma importância maior do que quando o comércio era dominado pelo ouro e marfim. Nesta altura foram emitidas autorizações que permitiam os navios saírem diretamente do porto de Quelimane sem passarem pela Ilha de Moçambique, na altura a capital do território. Em 1812 foi, inclusivamente aí instalada uma alfândega (RODRIGUES, 2006a: 29).

Donas das memórias

A instituição dos prazos criou uma elite na intersecção das sociedades colonial e nativa. As donas, na literatura e nos arquivos estão localizadas num não lugar. Não inteiramente nativas para os nativos, e nativas demais para a sociedade colonial. A questão da mestiçagem figura de forma central na literatura sobre as donas e a sociedade criada pelos prazos, assim como no imaginário da sociedade que se lhes seguiu após a sua extinção. Pelo menos duas das minhas informantes afirmaram que estas mulheres “mistas” eram donas – no sentido de proprietárias e comandantes dos destinos – de Quelimane.

Esta percepção ecoa a afirmação de Capela segundo quem a dona da Zambézia terá sido uma “reivindicação da mulata na afirmação do status adquirido” (CAPELA, 1995, p. 69). Em outras descrições a dona é considerada sinónimo de “europeias, mulatas ou [de] origem em Goa” ou “mulheres de cabelo corrido” (CAPELA, 1995, p. 67). Efectivamente, as primeiras donas tinham origem goesa. Eram elas Dona Ignez Garcia Cardozo, proprietária do prazo do Luabo e Dona Sebastiana Fernandes de Moura, proprietária dos prazos Quizungo, Macuze, Sone e Inhasoreire (CAPELA, 1995: 79, 81). Com o decorrer dos anos o número de descendentes afro-euro-asiáticos e proprietários de prazos terá multiplicado. Tendo havido preferência pelo casamento dentro do grupo ou com novos europeus, até pela garantia do acesso à propriedade. Ainda assim, e o casamento com mulheres nativas continuou.

A obsessão em torno da miscigenação da elite dos prazos foi sempre maior em relação às mulheres do que para com os homens. Enquanto os homens com o mesmo tipo de miscigenação eram simplesmente considerados muzungos, as mulheres tinham uma hierarquia estabelecida. Elas eram intituladas de donas, sinharas e nhanhas (CAPELA, 1995: 69), sendo estas últimas descritas por vezes de forma depreciativa como “amázias dos mozungos” (CAPELA, 1995: 67).

Como referido acima, a miscigenação faz também parte de alguma descrição das donas feita pelas minhas informantes. Também faz parte a descrição da africanização dos europeus que se casavam com mulheres nativas, como é amplamente defendido por Isaacman (ISAACMAN, 1972). Uma das minhas informantes descreveu as anhanhe como mulheres [negras], casadas com brancos (azungo). A sinhara era filha da nhanhe, e que quando a mãe falecesse a filha passava a ser sinhara. As donas vinham de Portugal – eram, portanto brancas – ou tinham riqueza – filhas de brancos que herdavam a propriedade dos seus pais. Outras informantes definiram a nhanhe como uma mulher casada com alguém importante, fosse branco ou não. A sinhara seria uma mulher que por ela própria era rica, mesmo sem marido. Foi descrita, por estas como branca mas que não vivia na cidade. A dona seria “filha de alguém, casada e que vive em casa dela” (tem propriedade própria). O casamento a que se referiam era com militares estacionados em Moçambique (alferes e furriéis). Alguns destes militares eram já casados em Portugal, e portanto não se podiam casar com as mulheres nativas. A coabitação sem casamento seria menos provável com a dona. Outras informantes ainda não conseguiam estabelecer uma distinção clara entre as donas, sinharas e anhanhe, detendo qualquer delas terras e poder sobre as gentes que nelas habitavam.

Nhanhe, irmã do régulo Voabil, usando blusa e capulana, sem data (colecção privada da família Voabil)
Figura 1 – Nhanhe, irmã do régulo Voabil, usando blusa e capulana, sem data (colecção privada da família Voabil)

Estas descrições coincidem parcialmente com a definição de capela do que era a dona, simultaneamente proprietária autónoma de terra e escravos (CAPELA, 1995: 79). A riqueza da dona, de acordo com as minhas informantes residia no terreno, nos coqueiros, no arroz e dinheiro. A mão-de-obra continuou efectivamente escrava, ainda no século XX. Mesmo quando a denominação mudou e a escravatura foi oficialmente abolida, as relações de patronato mudaram pouco. A capacidade de contratar e comandar mão-de-obra para trabalhar as terras manteve-se intimamente ligada à riqueza da dona.

Existem, no entanto outros aspectos de distinção mais consensuais que ultrapassam a questão da miscigenação. Estes incluem a descrição das vestimentas e diferentes formas de adorno. Unanimemente, todas minhas informantes descreveram que a real distinção na hierarquia das donas se via pela forma como se apresentavam. As anhanhe usavam combinações (roupa íntima), coberta por uma ou várias capulanas (pano). As sinharas usavam bajus, vestuário feminino originário da Índia. As donas usavam ombreiros e mangas compridas.

Adicionalmente, as donas reconheciam-se pelas joias de ouro que adornavam, a maluata (pequena bolsa) onde carregavam as suas libras de outro. Faziam-se também carregar de machila (liteira), por onde andassem. As outras senhoras, também se adornavam com jóias. Quanto menor o seu estatuto na sociedade feminina, menos precioso o metal com que se adornavam.

D. Ernestina de Menezes Soares, sem data
Figura 2 – D. Ernestina de Menezes Soares, sem data (colecção privada da família Barros)

Outro aspecto importante da sociedade onde se inseriam as donas eram as redes que elas estabeleciam tanto com os seus pares, como com a sociedade nativa. Seguindo a história de vida de uma das Donas de Quelimane, foi possível vislumbrar a rede de relações por elas estabelecidas entre si, o poder e prestígio que comandavam, apesar do declínio da instituição dos prazos e da sua própria capacidade económica.

Esta dona era D. Amália de Menezes Soares Pinto, filha de António Maria Pinto, um goês e D. Ernestina de Menezes Soares (vide Figura 2). O seu pai foi supostamente o fundador do prazo do Carungo9, um prazo situado em Inhassunge. A sua mãe era ela também filha de um goês, Amaro Francisco de Menezes Soares proprietário do prazo de Chirangano. D. Amália herdou a propriedade do Carungo de seu pai. Na altura, estava casada com Francisco Gavicho do Prado e Lacerda que passou a gerir o prazo. Nas suas várias obras sobre a vida e sociedade zambeziana, Gavicho auto-proclama-se um dos últimos prazeiros da Zambézia.

D. Amália raramente viveu no Carungo, tendo preferido sempre a cidade, onde viveu grande parte da sua vida enquanto solteira e depois de se separar de Gavicho de Lacerda, com D. Eugénia Peixe, uma das mais proeminentes Do- nas da Zambézia e que era prima do pai de D. Amália. Segundo uma das minhas informantes, neta de D. Amália, D. Eugénia Peixe foi a última das donas da Zambézia. O mesmo consta no Museu de História Natural em Maputo e alguma literatura, não necessariamente especializada na história do Vale do Zambeze (CRUZ, 2008).

De D. Eugénia Peixe contou-me a neta de D. Amália:

“[D. Peixe] tinha muito ouro, pulseiras, brincos. Criou uma criança, André Janeiro. Deu cabo da senhora com batota. Nem campa teve. Dona Eugénia Peixe era de peso. D. Eugénia quando morreu tinha raízes. Cuidado com ela. Tinham medo dela. Tinha má boca. Dizia, se alguém a apanhasse de viés, “deixa-lhe, vamos ver onde vai”. Falava só Sena. Donas antigas falavam só Sena. Talvez falassem português com os maridos. Rogava pragas em Sena. Tinha má boca.”

D. Ernestina, mãe de D. Amália era do Luabo e também ela falante de CiSena. A questão linguística remete para a relação entre as donas e as populações nativas, tanto trabalhadores como parentes das donas. CiSena não era a língua da região de Quelimane, onde impera o Echuabo. Nem as duas línguas são mutuamente inteligíveis. No entanto, as movimentações populacionais características da região do Vale do Zambeze permitiam a comunicação entre falantes de línguas diferentes. Adicionalmente, dentro dos membros da casa da dona estavam as canhanhe e os canfumo, parentes nativos da dona.

As “raízes”, de que fala a neta de D. Amália tem a ver com o apelo ao oculto, que muitas donas pareciam ter. De D. Eugénia dizem que tomava banho à meia-noite, nua no quintal, rodeada pelas suas aias. O seu poder estaria acrescido pelo poder dos curandeiros. Por essa razão os seus maridos estariam dominados por elas. Esta descrição reforça a descrição da relação das donas com os curandeiros e a gnose e cosmogonia nativa da região (RODRIGUES, 2010).

Mas o domínio das donas sobre os homens não era apenas restrito ao alegado feitiço ou magia. As mulheres participavam dos ritos de iniciação, onde se iniciavam nas práticas misteriosas de sensualidade. As sinharas e donas também eram iniciadas, pelas suas mães anhanhe. Por outro lado, a relação com o marido é descrita de forma material. “Ele comprava uma prenda para a mulher, mas não entregava até ela dançar danças eróticas”, diz-me a informante que relata sobre os ritos de iniciação. Conta-me também que os maridos quando fossem à Índia traziam prendas. Deles elas aprendiam a “comportar-se”, supõe-se que de acordo com as regras da sociedade colonial. O sentido de superioridade de umas em relação às outras incluía este domínio do comportamento “apropriado”.

O mau feitio das donas não foi mencionado apenas em relação à D. Eugénia. Outra informante fala de uma D. Ana, que herdara o terreno do pai ou do marido. “Metia medo, não queria confiança com as pessoas. [As pessoas] tinham respeito, não entravam na casa de qualquer maneira.” Várias fontes da época mencionam D. Anna de Moraes Pimenta, “filha de D. Pedro José de Morais, de Vila Real de Trás os Montes, (…) uma senhora macaense, viúva do coronel Fernando Augusto da S. Pimenta, ex-governador de Tete e Quelimane” (QUINTI- NHA, 1929). A neta de D. Amália também menciona sobre D. Ana Pimenta, que acabou morrendo na miséria, arruinada pelo procurador, de nome Moreira. Apesar do feitio, e dentro do hábito comum da época, D. Pimenta recolhia crianças em sua casa, de quem cuidava.

Fala-me outra informante de D. Adélia, mãe do Vasco Henrique de Oliveira. Era mulher do Administrador do Carungo. “Se alguém passasse e não cumprimentasse era massacrado. Tinha um instinto de malvadez. Acabou por
enlouquecer.”

Entre as donas “boas”, conta-me uma das minhas informantes, está D. Alzira. Esta dona, de nome completo Alzira Maria de Arroches Valadas Branquinho, diz-me a informante também teve ao seu cuidado muitas crianças. Ela era tia-avó de Maria Sorensen, autora do livro “D. Theodora e os seus Mozungos” (SORENSEN, 1998), que a considera de facto a última Dona da Zambézia, como atesta a dedicatória do seu livro.

Outra dona de que me fala a neta de D. Amália é D. Chipire, de seu nome Etelvina que fora casada com um dos directores da Companhia do Boror, goês de nome Ribeiro. Quando eles se separaram, conta-me a minha informante, ele levou os filhos. No livro “40 graus à sombra” (MONTEIRO FILHO, 1939), D. Chipire é mencionada com o nome de baptismo de Henriqueta. Dela é dito, no livro que matou o marido envenenado. Entre a memória esfumada e um estória ficcionada, é difícil discernir facto de realidade. No entanto, obras de ficção fazem parte de mnemónicas usadas por algumas das minhas informantes para recordar aspectos fundamentais da sociedade das donas. Para além de “40 graus à sombra” e “D. Theodora e os seus Muzungos”, falam-me da ficção de novelas brasileiras como Escrava Isaura e Av. do Brasil. Nesta última, uma mulher também recolhia crianças que posteriormente entregava a quem quisesse cuidar.

As diferentes informantes lembram diferentes donas. Todas mencionam D. Eugénia Peixe, várias mencionam D. Chipire. Pelo menos dois dos meus informantes mencionam a Menina Pácoa (Pascoinha). Menina porque nunca se casara. É memorável, mas não me explicam porquê. Na página do Facebook do Grémio dos Radialistas, num post em memória a Né Afonso, animador de programas de crianças, descubro que a Menina Páscoa tinha dedo para a cozinha.

(Não)-legado dos arquivos

Os arquivos coloniais são inegavelmente fonte importante de conhecimento, mas são também de desconforto, senão de conflito. Ainda que se parta do princípio que nenhum arquivo é neutro, e se leia os arquivos de forma crítica, não é possível ultrapassar o enviesamento da recolha e da decisão do que merece ser ou não arquivado e/ou estudado.

Os arquivos coloniais portugueses estão plenos de descrições sobre o processo de conquista e ocupação dos territórios ultramarinos, bem como da relação entre conquistadores e as populações nativas. As descrições incluem práticas e costumes, vistas e avaliadas pelos olhos dos cronistas. Estas descrições têm sido valiosas e determinantes para a reconstrução do processo colonial. Autores da história colonial portuguesa, mas também de outras potências coloniais e dos próprios espaços colonizados apoiam-se nestas fontes, que estão entre as mais antigas que existem sobre a descrição de vários povos.

A memória etnográfica descrita acima indica o que o material de arquivo não permite vislumbrar, como as relações humanas, que não as formais. Isto é, ao selecionar o que merece ser registado, deixa de fora um rol de relações informais, que no entanto fazem parte intrínseca da realidade que o arquivo pretende conservar.

Neste caso específico, os arquivos mencionam a quem pertenceram as propriedades, e fielmente permitem perceber quem comprou ou herdou as mesmas ao longo dos tempos. O que eles não permitem ver são os dramas humanos que antecederam ou sucederam o trespasse das propriedades, por exemplo. Donas arruinadas, separadas, abandonadas ou enviuvadas.

Nos arquivos estão também registados os hectares, número de coqueiros e escravos ou são abstractamente referidos “um grande número de trabalhadores”. No entanto eles pouco elucidam sobre as relações pessoais entre as donas e os seus trabalhadores. A percepção do escravo, do trabalhador forçado ou do contratado sobre o seu patronato não transparece no arquivo. Mesmo a historiografia sobre os movimentos de libertação, apenas descreve os maus tratos, mas não as impressões sobre a personalidade dos executores.

A literatura baseada nos arquivos descreve também a relação próxima entre as donas e os seus familiares nativos. Mas não qualifica, nem nomeia os parentes (canhanhe e canfumo), como nomeia as escravas (bandázias). Não estabelece, também de facto a relação íntima da nhanhe com a dona, sendo que aquela é sua mãe. Da nhanhe não se menciona nome, como se faz da dona. A nhanhe é relegada a “amázia de muzungo”, ignorando o prestígio que ela de facto tinha como proprietária de terras e escravos também ela.

Para as donas que não tinham parentes nativos, as originárias da Índia, Portugal e até Macau a relação com a população nativa não foi menos importante. Estas frequentemente recolheram como afilhadas crianças nativas, que pare- cem ter tido o mesmo papel que as canhanhe e os canfumo das donas mestiças.

O material de arquivo também não permite vislumbrar a importância de aspectos simbólicos como o vestuário, as joias e o modo de transporte, focalizando em outros aspectos que embora relevantes não são talvez os únicos ou os mais importantes na distinção feita pela sociedade, como é o caso da miscigenação.

A dona tem uma aura mitológica, de certo modo tanto no material de arquivo, como na literatura académica e também de ficção. Muita da ficção sobre as donas recorre a factos e personagens reais. A realidade mistura-se com a fantasia. No entanto, na inverdade da ficção ou na falta de fiabilidade da memória, as obras de ficção surgem como mnemónicas acessíveis para recordação do padrão geral. Estas obras e estes encontros com a memória lembram que os factos pouco valem sem os seus significados mais profundos.


Breve nota biográfica

Carmeliza Soares da Costa Rosário nasceu em 1975 em Maputo, filha de pais Zambezianos. 

Tem o grau de Mestrado em Antropologia Social e de Desenvolvimento e é candidata a Doutoramento pela Universidade de Bergen, na Noruega. 

Passou todas as suas férias escolares calcorreando com os seus primos e primas as ruas de Quelimane, deliciando-se com a cozinha da sua avó materna. Donde se instalou a sua identidade zambeziana e a sua paixão pelas suas gentes e culturas. Tem orgulho de descender de donas e anyanye, de onde tira inspiração para o seu trabalho e visão do mundo.

O excelente trabalho que aqui inserimos sobre as Donas da Quelimane nos finais do século XIX e XX, foi publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília em 1917 e enriquece o nosso conhecimento sobre um aspeto social muito curioso da Zambézia, investigado pela autora de forma acutilante.

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